As questões envolvendo habitação popular nas ocupações em encostas são as óbvias, e as favelas cariocas o exemplo mais conhecido de todos (ainda que o mesmo tipo de ocupação aconteça em todo canto), e ali os espaços comuns de circulação, que parecem o pior nestas situações, não são muito diferentes do que se vê em muitas cidades europeias, nos valorizados e charmosíssimos lugares onde a ocupação medieval não destinava mais espaço para a circulação, do que necessitava um burro de carga.
Ora, o burro de carga dos nosso dias é a scooter, a motocicleta de baixa cilindrada que também se vê nas favelas, fazendo até o serviço de mototáxi, e esta não precisa de muito mais espaço para trafegar do que um jumento. Então além do preconceito, e do tijolo baiano substituindo a pedra, não há muita diferença entre a nossa favela e o vilarejo medieval… Ambos não foram criados originalmente com infraestrutura de serviços, mas tem a graça do inesperado, das soluções particulares, não sofrem da mesmice urbanística impessoal dos espaços legislados, a diferença mais importante aqui, se compararmos com as charmosas ocupações medievais da Europa, é que se desde a favela os panoramas são estonteantes, a visão dela pelo resto da cidade é deprimente.
Este é um dos principais valores a resgatar. A paisagem experienciada tanto por quem vê a cidade desde o morro, quanto por quem vê o morro desde a cidade, e mesmo que não se tenha vistas fabulosas como no Rio, via de regra a paisagem desde o morro é bela, e a vista deste, não.
Assim como na Europa medieval (e para generalizar, na verdade em quase tudo que é canto), o que compromete mais a segurança das edificações é a água, logo a solução emergencial deve focar coberturas eficientes por um lado, e por outro o saneamento básico. Secar e drenar é o mínimo que se deve garantir para qualquer assentamento humano, e o custo destes componentes, mesmo no trato usual, é pequena parcela do todo. Agora, faça isto direito, que mais seria preciso? Pensando em sustentabilidade, uma solução desta ordem, ainda que emergencial, deve também ser permanente, resolvendo de vez a questão, e isto feito, com as circulações otimizadas, me pergunto se o restante do problema não passa a ser apenas questão cultural…
Lajes sobre pilares com cobertura viva, acompanhando as curvas de nível daqueles morros, e oferecendo a proteção eficiente, o teto que as moradias existentes tanto carecem, seriam a melhor solução. A chuva é retida, a água pode ser reusada, o terreno permanece seco. De cara obtém-se a segurança estrutural tão necessária, ao mesmo tempo que se recupera a paisagem. Por cima das lajes a circulação à nível fica facilitada, ali até se pode permitir ao usuário plantar, mas só. Por baixo, segue tudo como já é, sendo facultado ao morador a possibilidade de regularizar seu imóvel, se atender às exigências de praxe, como qualquer outro cidadão.
As colunas e vigas de suporte para estas lajes, inteligentes, abrigariam a infraestrutura necessária, intercalando entre úmidas e secas. Boa parte de seu custeio deve ser absorvido pelas concessionárias que passarão a vender serviços reincluindo estes consumidores ao meio social, bastando uma normatização adequada feita pelo poder público. Assim não é preciso cavar o terreno para abrigar tubulações, evitando as tradicionais demolições, remoção e abrigo da população envolvida, e construção de novas habitações do processo usual. Desta forma preserva-se e valoriza-se o que ali existe de melhor, e com a menor e mais necessária intervenção, obtém-se muito…
Cada edificação existente ganha com a circulação coberta, com a paisagem preservada, com a segurança e o novo entorno. Mais que isso, agora livre do embate das intempéries, deixam de precisar dos telhados e ganham o vão útil até a nova cobertura. Os fios e gatos desaparecem, as lajes verdes recuperam a topografia, devolvendo a paisagem para a cidade, normatizando, sem perder a pluralidade, a riqueza conquistada pela ocupação paulatina, pelo processo de acertos e erros do contínuo afazer leigo, que permanece, ganhando uma nova dimensão cultural, agora cidadã.
Assim não há remoção ou recolocação, quem ali está fica e pronto. Minimizam-se os resíduos, posto que não se trata de demolir tudo para recomeçar do zero, ou cortar o existente acompanhando o solo para abrigar dutos. A demolição é mínima e o descarte ainda pode ser utilizado no próprio local. A escala permite a pré-fabricação e aqui há espaço de sobra para otimizar tudo, especialmente com o uso de Equipamentos Móveis de Recuperação Urbana, reutilizando agregados e reduzindo exponencialmente custos se a produção for abraçada pelo poder público, permitindo ainda agregar tecnologias verdes como coletores solares, reuso de água captada, etc…
Com mais um esforço mínimo de planejamento, integram-se as áreas comunitárias, as pequenas áreas de convivência e os raros vazios. E naturalmente o uso nas fronteiras com estes espaços se tornará mais utilitário, comercial, e portanto também mais susceptíveis à normatização e fiscalização. Quanto maior o vazio, tanto maior a fronteira e maior a oportunidade para a exploração comercial. Assim a especulação passa a contribuir para o desadensamento, invertendo a equação. E a interface entre dentro e fora ganha uma tendência positiva, provocando um círculo virtuoso.
Ganha a cidade, o cidadão, a municipalidade e até mesmo as concessionárias de serviços. É uma solução que oferece um atalho importante, permitindo fazer muito mais com muito menos, e muito mais rapidamente. E ainda transformando áreas por padrão problemáticas, em trechos ou retalhos qualificados no nosso tecido urbano, oferecendo novas oportunidades de mobilidade em pontos onde, via de regra, esta também é uma carência importante.
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